A MIRAÇÃO

 







 

 

  

Detetive Ayahuasca

Era o fim de tarde do último dia, antes das autoridades decretarem o confinamento, quando um velho amigo meu, recém chegado da Amazônia, me convidou à sua casa para tomar Ayahuasca. Não era a minha primeira vez, mas foi a experiência de que mais recordo dos detalhes da minha"miração". Não integro, nem tenho objetivo de participar de qualquer seita ou culto. Apesar de submeter-me a um procedimento ritualístico de aura mística, nas vezes que tive a oportunidade de usar a Ayahuasca, foram num contexto de curiosidade empírica e de busca pessoal por conhecimento imaterial, sem envolver atividade religiosa institucional. Os eventos que escolhi para relatar aqui, são as representações mais próximas do que vislumbrei na ocasião e de certa forma, uma inspiração para a criação da minha personagem: Toni Jagube, o “Detetive Ayahuasca”.

Na casa deste amigo, ocupamos o seu quarto. Lá, além da cama e do armário, havia uma escrivaninha encostada à parede e mais ao centro, uma pequena mesa circular onde estavam colocados, uma garrafa com o conteúdo cheio e dois copos. A mesa estava entre duas cadeiras de madeira, viradas para a escrivaninha e de costas para a janela. Já sentados, conversamos um pouco sobre a política, a pandemia, o Brasil e também sobre outros assuntos mais leves…

Quando alcançamos um estado mais relaxado, começamos a beber o preparado. Depois, o meu amigo desligou o candeeiro e acendeu uma vela que estava num pires sobre a escrivaninha. Por experiência sabíamos que, mesmo depois de relaxados, não deveríamos nos desconcentrar da luz emitida pela vela. E assim seguiu-se a sessão. As palavras foram escasseando-se e após algum tempo, que não sei precisar, as sombras bruxuleantes de objetos como: porta-lápis, candeeiro e alguns livros que estavam empilhados por ali, começaram a tomar novas formas. A partir daquele momento, meu único interesse era tentar reconhecer figuras naquelas silhuetas dançantes que, aos poucos tornavam-se mais definidas...
De início, as formas das sombras pareciam ser pequenos cães a brincar. Então, me dei conta que, pelo formato da cabeça e das orelhas arredondadas, não eram cães, mas sim pequenos felinos, filhotes de onça, embolando-se, saltitando e a darem-se mordidelas e cambalhotas.
Sorri em silêncio. O brilho oleoso da vela havia capturado meu olhar. Através da fissura incandescente da chama, revelou-se uma passagem inter-dimensional. Do centro dela, irradiavam-se raios de luz como os de um antigo projetor de cinema, visto de frente. E em vez de testemunhar este fenómeno como um espectador sentado na plateia, eu era a tela. As imagens se constituíam pequenas e indefinidas ao saírem do núcleo da chama, daí ganhavam tamanho e definição vindo em minha direcção. Às vezes, demoravam-se um pouco em frente aos meus olhos, para então continuar a avançar até me trespassarem. Nunca olhei para trás, mas tinha a sensação de que, depois que estes seres etéreos passavam por mim, seguiam além a reverberar pelo infinito...

O que no princípio eram pontos vibrantes, micróbios a nadarem numa sopa espessa, aos poucos definiram-se como pessoas a chafurdarem numa enorme poça de lama... Mas, uma lama morna e agradável. Acho que eram dezenas de bacantes, talvez mais, a passarem por mim. Depois vi as pulgas-búfalo em volta do fogo, não... Não eram pulgas, mas homens diminutos, que cresciam nus usando máscaras, dançando em volta da fogueira num ritual primitivo. Havia uma mulher entre eles, no meio deles... Aliás, a fogueira é a mulher! E ela dança freneticamente agigantando-se até me engolir com sua vagina flamejante ao passar por mim... Sinto o cheiro dos pêlos queimados do meu braço. Não é dor, é calor. Estou a transpirar, fico tão molhado quanto os peixes que nadam na minha direção, uns tentam me beijar, mas desaparecem ao fazê-lo, acho que engoli alguns. Sinto algo nadando no meu estômago, não vou vomitar, já fui peixe também. Agora sou um anfíbio e me deixo hipnotizar pelos insetos, que voam ao meu alcance, são tantos! Minha língua comprida escolhe o vaga-lume, sua seiva doce desce pela minha goela, preenche-me e escorre
pelos poros, tenho luzes a sair pelas unhas, pela boca, pelo cu e pelo os olhos... É fantástico!

Agora, minhas mãos estão negras e alongadas, tenho também uma cauda, ouço o vento e com habilidade subo por galhos e cipós que me levam de dentro da copa, para o ponto mais alto da árvore, por onde através das folhas vejo o céu. É uma noite estrelada como nunca tinha visto. As estrelas ficam maiores, elas caem sobre mim, está a chover estrelas! Depois que elas passam é só escuridão. Então, vindo daquele breu sideral, ouço uma respiração distante… Como os outros, a silhueta começa pequena e aos poucos vai se tornando maior... Vem de encontro a mim, apesar do tamanho da cabeça e dos chifres, caminha elegantemente sobre duas pernas, como um homem. A criatura pára a dois palmos de distância do meu rosto. Sinto-me como Teseu encurralado no labirinto de Creta. Seus olhos amarelos fixam-se nos meus, ele fica mais próximo ao ponto de eu sentir sua respiração, penso em dar um passo atrás, mas lembro-me que estou sentado e há muito que já não sinto as minhas pernas. Suas narinas sentem o cheiro do meu medo. Paro de resistir e rendo-me a criatura com a cabeça de Gnu. Ele avança e passa através de meu corpo, deixando-me com um frio na espinha.  

Agora tudo são flores... Orquídeas, crisântemos e rosas que voam no meu sentido. Seus longos caules revelam-se veias e artérias, pulsando, bombeando sangue. Ouço a minha própria circulação! As dimensões ampliam-se, vejo plaquetas, hemoglobinas, células, vírus e bactérias... A chama continua a dançar, como uma odalisca de quadris largos a fazer movimentos sinuosos que só não deixam meu queixo cair, porque delicadamente uma das gentis serpentes que ela tem no lugar dos braços, o põe o meu maxilar no sítio, devolvendo
assim, alguma dignidade ao meu rosto pasmo. Com os olhos semicerrados, observo uma alvorada, um pequeno Sol em forma de boca, que cresce e me engole. De repente, sinto tocarem-me no braço. Era o meu amigo a me chamar. Uma luz artificial acendeu-se e a vela consumiu-se. Estávamos de volta. Balbuciamos algumas palavras como se estivéssemos recém despertados de um sono leve. Estávamos bem. Levantamos devagar e num quase mudo entendimento, decidimos que conversaríamos sobre a nossa experiência em outro momento. Então bebemos um pouco de água e depois, agradecido pela partilha, despedi-me e parti. No caminho para casa, tudo no mundo parecia igual, com exceção do brilho das luzes, estas brilhavam um pouco mais do que o habitual.

Sama